Memórias de um pé-de-juá do interior do Ceará

“Façamos elogio aos homens ilustres, que são nossos antepassados, em sua linhagem.” Eclesiástico,44  1

“Um povo sem memória é um povo sem história” Emília Viotti
 
Capela de São Sebastião, ao lado o centenário pé-de-juá

Memórias de um Pé-de-Juá do interior do Ceará

Sou uma árvore típica do semiárido brasileiro, conhecida como Juazeiro, laranjeira-de-vaqueiro ou simplesmente Pé-de-juá. Não estou querendo me gabar, mas tenho alta reputação por possuir diversas propriedades medicinais, sirvo como cicatrizante, higienizante, desopilante, expectorante, antigripal, anti-inflamatório… E tem mais, meu extrato é empregado na indústria farmacêutica a anos em produtos cosméticos, dentre eles xampus e cremes dentais e meus frutos do tamanho de uma cereja, são comestíveis utilizados na alimentação do gado na época seca.

Não lembro como vim parar aqui, mas tive sorte da minha semente germinar nessa planície nomeada pelos proprietários de Tabuleiro dos Mendes, a mais de um século. Não pensem que sou velha! Sou apenas uma árvore vivida! Uma árvore centenária! Daqui tenho uma boa visão das coisas que acontecem ao meu redor. Ainda bem! Já que sabem, que não posso sair batendo as pernas por aí.

Pelas contas de meus anéis, nasci ainda no século XIX. Lembro-me quando aqui era apenas mata, com animais e pássaros silvestres das mais diferentes espécies. As pessoas que andavam por aqui eram de passagem. Mas acredite, que todos tinham algo em comum, gostavam de se proteger do sol e descansar um pouquinho sob minha sombra. Acho isso muito bom, porque me deixa sempre bem informada. Não pensem que sou curiosa, nem fofoqueira, escuto porque estão falando perto de mim e não tenho como tapar os ouvidos, mas garanto que sei guardar segredo. Só que até agora ninguém nunca me pediu segredo, por isso posso contar algumas coisas que eu vi e escutei vivendo aqui.

Nos primeiros anos do século XX, as coisas começaram a mudar. Chegou aqui um jovem casal dizendo que em breve iriam construir uma grande casa para morar. Assim eles fizeram a primeira casa, tão bem caprichada, não parecia de taipa, com um maravilhoso alpendre defronte para mim. A partir daquele momento, passei a ter companhia para comigo à noite à luz do luar apreciar. A cada ano um rebento aparecia e para minha alegria debaixo de minha sombra adoravam brincar.

Juntos vimos as primaveras passar… Crescendo… Amadurecendo… Descobrimos que para viver nesse sertão é preciso coragem e resiliência para enfrentar a falta d'água, então construíram açudes e uma barragem para sobreviver.

Os homens daquela família viviam da lida com gado bovino e plantações de milho, feijão e arroz. As mulheres além dos afazeres domésticos, faziam queijos e doces e ao entardecer fiavam, bordavam, faziam crochê e principalmente macramê.

O trabalho era árduo e pensando num futuro melhor, viram que educação não podia faltar, então uma professora resolveram contratar para as crianças lecionar, que por vezes sob minha sombra os ensinava e no meu tronco gravava nomes seus. E foi assim que com eles aprendi a Cartilha do ABC, se meus galhos permitissem também tinha aprendido a escrever.

Nas idas à cidade, nos dias de feira, o patriarca da família, gostava de trazer novidades encontradas por lá. Recordo bem do dia que trouxe um caixinha que falava, contava tudo que acontecia em outros lugares, além de sair dela músicas que nunca tinha escutado, pois até então só ouvia as melodias cantadas pelas mulheres da casa e o canto dos homens tangendo o gado. Desse dia em diante, ao anoitecer, todos sentavam na varanda e escutavam o que dizia aquele aparelho que chamavam de “Rádio”. Eu que não era boba, de longe ouvia tudo, e cá pra nós pense numa caixinha fofoqueira.

A "Era do Rádio” chegava afinal, e através dela soubemos que acontecia a Segunda Guerra Mundial ( E eu que ainda nem sabia que houve uma primeira!), onde um grupo político na Alemanha perseguiam as pessoas por razões raciais ou ideológicas (Que pra mim era verdadeiramente um despautério!), e o governo brasileiro iria convocar os jovens para lutar contra eles no front de batalha do norte da Itália. Só se via a agonia dos pais e irmãs daqueles jovens rapazes, pois as notícias sobre o retorno eram incertas, caso fossem convocados, assim a filha primogênita preocupada, se apegou a São Sebastião fazendo essa promessa: “Que se guerra acabasse e ninguém da família ou da vizinhança fosse convocado para a batalha construiria uma capela em sua homenagem”.

Para minha alegria a capelinha foi construída do meu lado direito. E para agradecer as bênçãos alcançadas desde 1947, no mês de janeiro tem festejos a São Sebastião, com hasteamento de bandeira, novena, quermesse, leilão e procissão, para a diversão até um forró dos bons. Imagine que alguns até quiseram a festa apartar por posição social, mas logo perceberam que Sebastião disso não ia gostar, que ali não cabia repartição, juntos graças maiores iriam alcançar. E hoje tudo isso virou tradição.

Houve tempos de aflição, no qual me vi sozinha esverdeando a várzea desse lugar. Onde muitos partiram e eu aqui a ficar, não podia segui-los, por isso fiquei a chuva esperar… Quando vi retirantes, os meus juás oferecia para sua fome saciar. Vi o DNOCS abrindo caminhos, confesso que tive medo, principalmente das grandes máquinas, arrastando tudo à minha frente, por pouco não me derrubaram, talvez minha sombra lhes servia e tiveram piedade. Desde então, nessa estrada, pau de arara se via passar.

Enfim, o cheiro de terra molhada pude sentir, a felicidade tomou conta de mim, um banho daqueles pude tomar. Renovar minhas forças e ver o manto verde cobrir o sertão. Veio trazendo fartura, o algodão na região Centro-Sul, teve destaque quanto a produção. O plantio, colheita e comercialização do conhecido “ouro branco”, trouxe riqueza à população.

Esse Tabuleiro se viu movimentado como nunca, sendo instalado posto de gasolina, bodega, açougue, casa de tecidos, restaurante com pousada também.

Os janeiros foram passando, Mendes, Arrais, Alencar, Ferreiras, Oliveiras, Pereiras, Silvas, Sousas, dentre outros, foram chegando. Tempos de bonança, casamentos, novas casas, um aconchegante vilarejo se formando, despertando em gente de fora a vontade de também ficar, mas naquela época, os proprietários não quiseram sequer vender mais um palmo de chão, não lhes agradava a ideia de crescer a população.

Com o desenvolvimento das cidades à nossa volta, chega a nós a famosa “luz elétrica” aposentando as lamparinas que tantas noites ficaram a clarear. E pra não me queixar, a minha frente um poste vieram colocar.

Pessoas ilustres também vieram me prestigiar. Me recordo bem do dia em que um poeta, com apelido de passarinho, aqui pousou, em silêncio todos ficamos pra ouvir suas mais lindas canções sobre as alegrias e tristezas que cá vivemos no sertão.

Mas, sabe o que é bom mesmo? Era ficar com a molecada no terreiro a brincar, eles de lá eu de cá: bila, pipa, bola de meia, pião… e de noite, ciranda cirandinha…enquanto uns ficavam a cirandar, nas calçadas só se via o namorico começar: “Cai no poço. Quem me tira? Meu amor. É esse? Não é esse? Sim. Pera maçã ou salada mista?” Eu só queria que sobrasse ao menos um abraço pra mim…

Eita medo medonho que me dava das histórias assombrosas que contavam. No início era até empolgante, mas no fim todos corriam para dentro de casa assustados. Quanta falta de consideração me deixavam sozinha aqui fora a mercê das almas penadas e do bicho papão!

Perto de mim, trataram de uma Escola construir, assim todos podiam ali estudar, em piquenique, guisado e leitura para minha alegria, a professora muitas vezes em seu plano de aula está a me incluir para seu ensino incrementar.

Não podia deixar de falar sobre algumas curiosidades vindas da “Terra do Juá”, aliás da cidade de “Juazeiro”, que recebeu esse nome em homenagem aos parentes que tenho por lá. Quando a primogênita foi a uma Romaria do “Padim”, trouxe de presente para os amigos, a febre do momento (Não vá pensar que era doença, não!), os famosos monóculos, na época era melhor que instagran pra quem gosta de registrar e compartilhar.

Com a chegada de uma família daquelas bandas, começaram a “Renovação” realizar. Era de costume uma vez por ano, o casal convidar amigos e parentes para participar das leituras e dos cânticos, a fim de renovar sua fé. Uma rezadeira ou rezador, é o responsável por o momento celebrar, e para finalizar de “Repente” uma boa cantoria ficava a todos alegrar, e mais outra tradição se via chegar.

O auge das fotonovelas chega ao fim com o aparelho de TV, chegando para entreter o povo com sua mais variada programação, foi presente trago da capital por um dos filhos do casal. Vinha gente da redondeza ver televisão, me esgalhei toda pra poder ver, mas a janela era muito disputada por aqueles mais envergonhados que de fora assistiam cheios de emoção.

A mulherada pode descansar de carregar lata d'água na cabeça, pois chega enfim a tão esperada água encanada. Vinda do grande açude, daquele Coronel, que quando aqui chegou assustou a todos sobrevoando o povoado com seu avião. Eu mesma me tremi toda na hora que vi, pensei ser um pássaro gigante que iria pousar sobre mim.

Para ajudar as benzedeiras e curandeiras a cuidar dos males do povo, a prefeitura um Posto de Saúde aqui implantou, com médico e remédio para assim tratar dos doentes do lugar.

De repente chegou aqui um povo chamado de Ciganos. Você já deve até imaginar onde eles inventaram de se arranchar? Dou um juá pra quem adivinhar. Era uma zoada, uma língua diferente. No início não entendia nadinha de nada, mas o convívio me fez entender. De noite gostavam de cantar, dançar e violão tocar. Eu no meio, dormia e sonhava que com eles estava a dançar. Com um olhar torto, algumas pessoas da comunidade ficavam de longe a observar, enquanto outros se achegavam e até entregavam suas mãos para eles o futuro adivinhar, às vezes até se propunham a fazer feitiços de amor pras moças desencalhar. Da mesma forma que chegavam, de repente também partiam.

E vale lembrar que não ficou só com São Sebastião as festividades, não. Quando se ouve a zoada dos chocalhos e os chicotes a chicotear, já sabemos, são os caretas da Semana Santa a chegar: “Uma esmolinha Dona Maria e Sr. João pelo amor de Deus”, assim ficam à porta do povo a pedir, pra mim nem pedem, já sabem que minha sombra nunca hei de negar.

Em maio tem Coroação de Nossa Senhora com os anjinhos em torno a cantar. Em junho… Empresto até meus galhos para amarrarem os barbantes cheios de bandeirolas para São João e São Pedro festejar e daqui assisto no terreiro a fogueira queimar e a juventude a quadrilha dançar.

Praticamente após um século do advento do telefone, um orelhão aqui vieram instalar e assim um "alô" a quem estava longe poderiam dar. Não demorou muito, com o avanço da tecnologia logo foi substituído por os famosos celulares, que aproximam pessoas distantes e pode também pessoas próximas distanciar.

E o tempo está passando… suas marcas em meu tronco são visíveis. Em meu coração, está o que não vê, se sente… da saudade que fica de pessoas que não vejo mais, das tristezas que nos fazem refletir,da alegria dos sorrisos recebidos, e da felicidade que à vida dá sentido.

Assim, sem arredar minha raiz daqui, vi e ouvi pequenas histórias que fazem parte de grandes e estão guardadas na memória desta árvore centenária, chamada Pé de juá.

           
Escrevi Memórias de um Pé de Juá, em homenagem aos que saudades deixaram: meus bisavós Pedro da Silva Rattes e Joana Mendes de Brito Arrais, meus avós Pedro Mendes Rattes e Olga de Alencar Arraes e meu pai Raimundo Mendes Arrais (in memoriam). Dedico às minhas tias Maria das Graças, Regina, Maria Cecilia, Franci, Joana Darc e tios Carlos, José Rosário, Expedito, Vital e minha mãe Ivanir por comigo compartilhar e encantar com histórias desse lugar.
Cristiane Ferreira Arrais

          
Registro da apresentação do texto pela turma do 5 ano da Escola Francisco Mendes, professoras Rivania, Elitania e Elaine para a Praça Literária no ano de 2022 e visita a árvore no Distrito Taboleiro, Antonina do Norte-Ce.
 









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